sábado, 19 de janeiro de 2013

CONTO “UMA FAZENDA, UMA ESTRADA E O PADEIRO”.

 

UMA FAZENDA, UMA ESTRADA E O PADEIRO

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Quando ficamos bastante marcados pelo tempo, passamos a pensar na infância com mais carinho. Da minha infância não posso reclamar. Fiz muitas peraltices e até travessuras mesmo. Eu morava, dos quatro aos oito anos de idade, em uma fazenda de gado; em uma casa na beirada de uma estrada que ligava uma cidade a um pequeno povoado. A minha casa era, como costumam dizer, em um “lugarzinho no meio do nada”, pois ficava tão longe da cidade quanto do povoado mais próximo e, para complicar mais ainda, sem energia elétrica. Por este motivo minha família ficava um pouco isolada; cultivando para comer e sem muita informação do que acontecia no campo da política, da cultura e até mesmo daquelas fofocas que as pessoas costumam dizer quando não tem algo realmente importante para uma conversa: quem morreu, quem se casou, quem se separou ou quem teve filho recentemente, etc. A nossa principal forma de contato com a cidade e fonte de informação era um padeiro ambulante que passava duas vezes por semana para vender, trocar e comprar quase que de tudo.

O padeiro ambulante (nunca fiquei sabendo o seu verdadeiro nome) percorria em sua bicicleta de carga todos os caminhos que levavam às fazendas que ficavam próximas da estrada principal. O padeiro era a alegria das donas de casa e, principalmente, das crianças. As donas de casa gostavam dele porque podiam trocar os pães por produtos que elas faziam como broa de fubá, farinha de mandioca, biscoito de polvilho, entre outros; ou que coletavam como bananas, ovos caipiras, feijão preto, milho de pipoca e ervas medicinais. Por outro lado, as crianças gostavam dele por causa dos pequenos brinquedos e doces que o acompanhavam dentro da cesta grande de taquara em que carregava os pães.

Toda segunda e quinta-feira, eu levantava bem cedinho, lavava o rosto na água fria da bica e ia para a porteira que ficava ao lado da estrada, a uns trezentos metros de minha casa e em um ponto estratégico de observação. Eu subia na porteira e ficava esperando surgir ao longe a figura disforme do padeiro. O terreno da fazenda, que era uma grande vargem, e a estrada quase sem curvas possibilitava uma visão privilegiada e a grande distância. Por volta das seis horas da manhã já era possível avistar ao longe as cestas de taquara tampadas com um pano branco a refletir os primeiros raios do sol. Quando eu confirmava que realmente era o padeiro e sua bicicleta que estavam vindo, eu saia pulando e gritando rumo ao quintal de nossa casa e, logicamente, com toda está empolgação acordavam os meus quatro irmãos. Depois eu voltava e aguardava a aproximação vagarosa do padeiro.

À medida que o padeiro ia aproximando, ouvia-se o tilintar dos sininhos que estavam colocados nas cestas de taquara e que tocavam com insistência a cada buraco da estrada irregular. Quando ele chegava, eu já estava com a porteira aberta para ele poder passar sem descer da bicicleta. Com um sorriso no rosto, apesar dos poucos dentes na boca, e uma voz amiga ele dizia:

— Bom dia! Dona Maria está em casa hoje?

Dona Maria, era assim que minha mãe era conhecida na vizinhança. Na verdade nem era preciso dar aquele resposta, pois ele sabia que muito, mais muito raramente mesmo minha mãe saia de casa. Com um gesto de cabeça dizia que sim e saía correndo atrás dele e sua bicicleta. O padeiro parava na frente da porta de entrada da nossa casa e gritava:

— Dona Maria! Tem pão fresquinho hoje e o preço está baixinho também.

Lá de dentro da nossa casa humilde, surgia a minha mãe rodeada pelos meus três irmãos mais velhos e com o caçula no colo. A minha mãe era uma ótima quitandeira; ela era muito conhecida na região por suas broas e biscoitos que eram assados no forno de barro em formas de folha de bananeira; sendo a sua especialidade a broa de arroz.

— Seu padeiro, hoje o senhor custou a chegar.

— É Dona Maria, acho que estou ficando velho. Já não consigo mais pedalar esta bicicleta com tanta velocidade quanto há alguns poucos anos atrás.

Não precisava olhar com maior atenção para perceber que não fora somente o padeiro que tinha envelhecido. A sua bicicleta também tinha envelhecido muito. Os pneus carecas, a pintura enferrujada e as engrenagens desgastadas pelo tempo já não proporcionavam a mesma eficácia dos quinze anos atrás, em que a bicicleta fora comprada e adaptada para transportar as duas cestas de taquara para carregar os pães: uma cesta grande na frente e uma menor atrás. Na bicicleta ainda foi acoplada uma daquelas sombrinhas de praia, que servia para diminuir o castigo constante de sol e chuva.

O padeiro era um homem de pele parda, estatura mediana, aparentando uns cinqüenta e cinco anos de idade e que sempre andava com uma bermuda azul-marinho, uma camisa de manga comprida listrada e uma botina de couro.

Com a minha família reunida em volta das cestas de taquara, só faltava o meu pai que nesta hora já havia saído para tirar o leite das vacas; o padeiro levantava o pano branco e um cheirinho gostoso de pão chegava até os nossos narizes.

— Hoje, eu tenho pão de sal, pão de doce, pão tatu e pão sovado — dizia o padeiro e depois completava — quantos de cada a senhora vai querer.

— Só vou quer oito pães de sal hoje, pois não tive tempo de fazer muita coisa para trocar com o senhor — passando uma das mãos na cabeça, a minha mãe continua a explicação — tem dias que estas crianças deixam-me doida de tanta bagunça que fazem e não consigo fazer quase nada.

— Não tem problema Dona Maria, a senhora é minha melhor freguesa. Pode pegar o quanto quiser, depois a senhora faz mais daquela broa feita de arroz e estamos acertados — o padeiro parou de falar, deu uma olhada para o céu, acendeu um cigarro de palha, sorveu lentamente a fumaça do cigarro para os pulmões e continuou — na semana passada, tive muita encomenda daquela broa e falei com os outros fregueses que levaria em breve. Posso contar com a senhora.

Neste momento a minha mãe ficava toda envaidecida, pois gostava muito de receber elogios em relação às suas broas e biscoitos. Enquanto o padeiro continuava a fumar o cigarro e a soltar muita fumaça – que segundo ele mesmo, era para afugentar os mosquitos; minha mãe de cabeça baixa pensava e calculava as possibilidades de atender o pedido. Ela levantou a cabeça e afirmou:

— Pode contar comigo sim seu padeiro. Na semana que vem, a minha sogra vai passar uns dias aqui em casa e terei tempo para fazer uma grande formada de broa de arroz e, se o senhor quiser, faço um pouco de biscoito de polvilho de mandioca também.

— Acho que só vou quer a broa de arroz mesmo. Estamos na época da colheita da mandioca e em todas as casas por onde eu passo estão fazendo biscoito. Claro que nem todos os biscoitos são feitos com a mesma prática e nem em forno de barro como os da senhora. Poucas vezes vi tanto biscoito em minha vida como agora.

— Neste caso, além dos oito pães de sal, o senhor arranja-me também duas sacolas de pão sovado, pois vamos receber visita do pessoal da cidade hoje.

— Tudo bem Dona Maria.

Na mão do meu irmão mais velho, já estava uma bacia de alumínio onde o padeiro colocou os pães de sal e as sacolas do pão sovado para as visitas. Ao revirar a cesta para retirar os pães o padeiro deixou a nossa vista os brinquedos que estavam no fundo. Neste momento, meus irmãos e eu começamos a puxar a saia de nossa mãe e a pedir com insistência para ela comprar um brinquedo para nós. Ela brigava com a gente dizendo:

— Crianças, hoje eu não posso mesmo. As coisas não estão muito fáceis aqui em casa — e virando para o padeiro continuava — se eu não tiver um pulso firme essas crianças gastam todo o nosso dinheiro com brinquedos.

— Criança é assim mesmo Dona Maria. Vou dar um pequeno brinquedo par cada uma das crianças e depois quando a senhora puder compra mais.

Nós ganhamos realmente pequenos brinquedos, os meus irmãos mais velhos ganharam um apito cada um, eu ganhei uma língua-de-sogra e o nosso irmãozinho caçula ficou sem ganhar, pois o padeiro não tinha nenhum brinquedo para sua idade.

Depois de anotar em uma caderneta azul a venda, ou melhor, a troca que havia feito com minha mãe, o padeiro despediu-se dizendo que na outra semana voltava para buscar as broas de arroz. Como sempre, eu o acompanhei novamente até a porteira e fiquei esperando que ele sumisse na primeira curva da estrada rumo à outra casa; já com o sol clareando todo o dia.

Ao voltar para casa, encontrava minha mãe preparando os copos de café com leite e passando manteiga nos pães. Uma por uma, criança por criança, ela ia chamando e entregando um copo de café com leite e um pão inteiro ou somente um pedaço dependendo de nossa idade e fome logicamente. Em dias muito especiais, a manteiga do pão era substituída por fatias de salame e no lugar do café com leite, era servido suco de acerola ou limão.

Quando eu acabava de tomar meu meio copo de café com leite e minha metade do pão, ia levar uma caneca grande de café e um pão inteiro para o meu pai no curral que ficava na sede da fazenda. Chegando lá, o meu pai pegava a caneca com o café, tomava o café até ficar pela metade da caneca e completava-a com leite retirado diretamente das tetas da vaca fazendo até espumas. Ainda debaixo da vaca, ele pegava o pão e comia todo ele com duas ou três dentadas apressadas.

Nesta época tive o meu primeiro emprego que era correr atrás de uma mula. Assim que meu pai acabava de tomar o café com leite e de comer o pão, ele dizia:

— Pode ir para o pasto correr atrás da sua mula.

Eu caminhava uns quinhentos metros até um pasto que ficava do outro lado da estrada, passava no vão entre os fios de arame farpado, visualizava onde se encontrava a mula e, com a ajuda de uma corda, começava a correr atrás da tal mula com muitos gritos e gestos. O que acontecia era que a mula tinha um comportamento extremamente arisco; dava muitos coices e era quase que impossível pegá-la para colocar os arreios enquanto ela não estivesse cansada. Assim, o meu primeiro emprego consistia em cansar a mula, para depois que acabasse de ordenhar as vacas o meu pai viesse e conseguisse domá-la. A mula era realmente valente, ela gastava a cada dia mais tempo para se cansar. Em um determinado momento, já eram necessárias quase duas horas de corrida intensa para que ela aquietasse. Lá do curral, o meu pai via o momento em que a mula parava em um certo canto da cerca do pasto e ele sabia que aquele era o momento correto de pegá-la para colocar na carroça e levar o leite até a cooperativa de produtores rurais.

Como acontecia na minha casa, o padeiro era muito esperado por todos os moradores. Nas casas onde havia pessoas letradas o padeiro fazia papel de jornaleiro, vendendo revistas e dando jornais velhos para a leitura; nas casas dos analfabetos que eram a maioria o padeiro era solicitado para ler recados, cartas, bulas de remédio, folhetos entre outros, para ajudar aquele povo tão sofrido a ter um pouco de informação; nas casas que tinham parentes na cidade ele fazia o papel de carteiro levando e trazendo recados, notícias, cartas e bilhetes com os mais variados assuntos e temas:

Marta do Totonho. Minha filha Cleuza teve um menino com saúde, mas estamos precisando de roupas de bebê, pois fomos pegos de surpresa. Agradecida, Dona Julita do Senhor Francisco Barnabé

Senhor Antônio da Farmácia. Já faz quase uma semana que meu filho Marcelo não pára de ir à casinha, o senhor não tem um remédio para melhorar o estômago dele, se tiver manda com o padeiro que depois mando o dinheiro. Pedro da Fazenda Nova Invernada

Senhores Pais. Devido a um problema de saúde, eu não poderei dar aula durante os próximos quinze dias. Agradeço a compreensão de todos. Dona Glorinha, a professora do Colégio Nossa Senhora da Conceição

As pessoas que compravam os pães com dinheiro eram somente os fazendeiros, pois os empregados naquela época não recebiam uma remuneração digna; na sua grande maioria trabalhavam em troca de casa para morar e um pedaço de terra para plantar alimentos para a sobrevivência. Como não havia então dinheiro com boa parte dos fregueses, o padeiro tornou-se um mascate trocador; o que ele trocava em uma casa por pães, na outra trocava por uma galinha, ainda em outra trocava por farinha de mandioca ou milho de pipoca. Sendo que ao final os produtos da troca eram vendidos na cidade.

Certa vez, escutei uma conversa do meu pai com o padeiro, em que eles falavam sobre as dificuldades que os trabalhadores passavam nas fazendas e sobre a falta de reforma agrária no Brasil. Recordo ainda as últimas frases do diálogo:

— Senhor acha justo nos cuidarmos da terra há tanto tempo e não possuirmos nem um pedacinho de chão para chamar de nosso? — perguntou o meu pai em tom de tristeza.

— Repartir a terra que deveria ser de todos, parece uma redundância lingüística, mas é a mais pura realidade em um mundo em que não há igualdade — respondeu o padeiro assumindo ares de uma pessoa entendida no assunto.

Eu não entendi nada no momento, mas gostei das palavras e de como foram ditas. Hoje, compreendo melhor aqueles palavras após ter visto e sofrido na pele as conseqüências da má distribuição de renda no nosso país.

Lembro de uma certa ocasião em que eu fiquei com uma tremenda gripe, com direito a nariz escorrendo e garganta infamada. Passei vários dias só comendo um pouquinho de pão molhado no café e depois durante uns três dias não comia nada mesmo; além da garganta infamada, tudo o que eu comia era vomitado rapidamente. A minha mãe sempre me incentivava a comer algo, dizendo:

— Fala o que você quer comer que a mamãe compra.

Em um momento, falei para ela que o que eu queria comer era carne de peixe, podia ser traíra ou acará. Confesso que nunca tinha comido estes dois tipos de peixe, mas sempre ouvia falar que eram gostosos e muito difíceis de serem capturados com o anzol.

A minha mãe logo replicou:

— Mas estes dois tipos de peixes são os que possuem maior quantidade de espinhos. Será que você conseguirá comer com essa garganta assim toda inflamada?

O padeiro que estava em minha casa naquele dia esperando sair mais uma fornada de broa de arroz, disse:

— Dona Maria, desejo não se discute! Deixa que vou arrumar os peixes.

No outro dia à tarde, o padeiro chegou lá em casa com três enormes traíras ainda na fieira. Imediatamente, a minha mãe limpou e temperou as traíras, enquanto a gordura esquentava na panela. Sei que em poucos minutos eu estava comendo, com fome de mais de três dias, um enorme pedaço de traíra passado no fubá e depois frito. Se o peixe traíra possuía muitos espinhos como minha mãe disse na época, o meu desejo de comer era tão grande que não me deixou encontrar nenhum vestígio de espinho naquele dia.

Nunca conseguia ver o retorno do padeiro e sua bicicleta vindo do povoado em direção à cidade, pois ele retornava já tarde da noite e eu de tanto fazer minhas estripulias durante o dia ia dormir cedo, pouco depois que o sol se punha no horizonte. Em alguns dias, o sono era tão forte que eu não conseguia nem esperar para comer o mexidinho que era feito pela minha mãe com as sobras das comidas do almoço e da janta para nós por volta das dezoito horas. É, criança dorme muito mesmo.

Alguns anos depois, minha família mudou-se para outra fazenda em uma grota mais distante. Assim, eu fiquei sem a presença bem-vinda e esperada de um padeiro para alegrar as minhas manhãs. Mas ficaram e ainda estão presentes em minha vida os cheiros gostosos dos pães transportados por aquele padeiro e do café com leite feito por minha mãe para comer com os pães; sensações que não podem ser encontradas com o mesmo frescor nas padarias de hoje.

Dos muitos ensinamentos e palavras de valorização humana que ouvi o padeiro ambulante proferir, nos seus momentos filosóficos, não me recordo de muitos devido à distância da minha infância e o tempo presente. Mas carrego bem gravado no coração e na mente uma frase sua, que se tornou para mim um amuleto de sorte e um propósito de vida: é melhor cair no buraco algumas vezes do que nunca olhar para as estrelas.

 

OBS.: TEXTO ORIGINAL SEM EDIÇÃO.

LIVRO CONTO, RECONTO; ENCONTRO OUTRO CONTO II. ESCRITOR JOSÉ MARIA CARDOSO. EDITORA CARATINGA 2010.

 

ESCRITOR JOSÉ MARIA CARDOSO LIVROS (7)

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

POESIA “PROVOCAÇÃO”

PROVOCAÇÃO

 

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LIVRO LABIRINTO POÉTICO, ESCRITOR JOSÉ MARIA CARDOSO. LANÇAMENTO EM BREVE!!!

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